segunda-feira, junho 28, 2010

Gaiola de Poeiras

E ela ficava lá;
oscilando entre o estar e o não-estar,
criando mal-estares no seu cômodo
tão sem vontades de vida...
Tateava cada impressão sua,
cada prova do seu ignóbil existir,-
sim, ela sabia do existir, e a consciência afligia e picava.
Picava e afligia. Ela tinha lá suas resoluções...-
nas frestas da janela, no azulejo rachado.
Caducou dias, quis brincar de feiticeira carcundando em círculos
e adormecendo de ópios mundanos.

.

Daí amansou, amansou queta que nem bicho de pasto criado.
E foi oscilando cada vez menos
pensando em nadas, no cego escuro do dentro...


Fazia cinza do lado de fora.
e esse sangrar? de que me serve?
prova de fertilidade vã, prova de sentir arrefecida,
e chiar e berros ao relento.
é febre e surto no mesmo caldeirão carcomido.
é lua cheia vazia desperdiçando vermelhos,
é chuva quente debochada de perfume barato.
some de mim, sangue podre, vai;
vai verter veias mais frias que te mereçam o amargo.
arre...

segunda-feira, junho 21, 2010

Do descaso/humanista não-praticante

“Avoar por aí no silêncio brando das ruas.
Avoar de manhãzinha antes dos barulhos da cidade
E encontrar gestos singelos em cada pedra ou parede antiga
Que se ache por aí.”

(...)

E pensar que no meio/após do acordar chuvoso do dia
seria difícil cruzar com pequenas coisas, trombar nelas.
No meu seguir desprendido, aconteceu de uma delas me aparecer.
Um par de olhos gentis me avista. Encaro resquícios de bondade humana,
em frestas enrugadas pelo sol a pino da cidade suja. Compaixão, talvez.

-Vá com Deus, minha filha. Ela diz.
E segue adiante com um guarda-chuva espichado,
e as canelas cobertas de veios, e gastas, meladas de lama.

Então fico parada no meio da rua estreita... Parada no meio da pobreza ao redor,
no meio da podridão acesa.
Meu cérebro efervesce querendo pensar em algos,
no entanto apenas meu coração comove  e responde a qualquer estímulo desperto.
E tremo toda, não sabendo porquê. Tremo no meio da chuva e da rua semi-deserta.
Observo um passarinho bebericando a água escoada da bica dum armazém de esquina.
A água é imunda.
Ele bebe mais um pouco e avoa ágil pelo céu cinza, fazendo pouco caso...

‘Você também senhora’, respondo eu,
e avoo pra casa com meus passos lerdos e cheios de preguiças,
avoo com o mesmo sem-cerimônias daquela ave.

quinta-feira, junho 17, 2010

Do silêncio dos fatos

Abriu a porta sem fazer caso. O motor da geladeira e a respiração forte dele dormindo eram os únicos ruídos na noite alta... Largou a bolsa no sofá, acendeu um cigarro e pegou um copo d’água. A casa assemelhava-se a um estúdio de filmes noir... Entrou no quarto para fita-lo. Parecia fingir que dormia, ao invés de fazê-lo; deitava de lado, só com a cabeça de fora. Um leve ofegar sentia sempre diante dele, morno. Assim que ela virou-se, ele abriu os olhos. Fumava outro cigarro no sofá caramelo, a fumaça subindo preguiçosa no escuro da sala, brincava com o copo... Apareceu na porta do quarto, encostado na parede, vestido com uma calça jeans surrada, da época em que se conheceram (recentemente ele habituara-se a dormir de cuecas, ou calça). A barba desgrenhada, os olhos fundos e vermelhos, ela sabia que ele não tinha dormido nada, ou quase.


- Onde cê tava? Sai desde manhã cedo... Deixa um recado escrito simplesmente: ‘Saí’ e ponto. Qual foi?
- Você é a minha mãe agora, ou algo do tipo? E não saí desde manhãzinha; saí pouco antes do almoço, cheguei agora.
- Que seja... Pronde foi? Faz uma semana ou mais que mal te vejo.
- Eu também tenho uma vida. E tu não tem muito com o que te preocupar, semana que vem tô voltando pra casa. Daí tu pode parar de fingir pra ti mesmo que tá preocupado com algum algo, e viver a tua vida.

Fitou-o por um tempo, como que explicasse com os olhos as palavras que não conseguia vomitar.


Mediu ela cautelosamente. ‘caralho, pensou, como ela tá tesão’. Fazia um mês e uma semana exatos que não transavam. Ela nunca fora gostosa, sempre meio gordinha, mas ultimamente vinha emagrecendo espantosamente, e ele desconfiava o porquê; fora os remédios que ela mencionou que iria comprar, mesmo contra a sua vontade. E apesar de não ter muitas curvas, era bonita num geral - como dizem: era “comível”. E tinha um rosto lindo. Um olhar penetrante e quase sempre luminoso, a boca pequeníssima e desenhada singelamente. Cabelos curtos, castanhos, cacheados.
Usava um vestido preto, meio amarrotado (o que ele achava o máximo quando ela colocava), um decote ferino, com um zíper no meio pra facilitar tudo. Meias-calças pretas translúcidas interrompidas por botas de salto fino. A maquiagem perfeita; apesar de já ser tarde, não sabia porque, mas imaginava que ela tivesse retocado. Um batom quase cor da boca, porém chamava... Olhos de uma Cleópatra esquecida, e cílios enormes. Tradução: ela queria dar pra alguém. Ele desconfiava o porquê, novamente.
Permaneceu encostado na parede, sem pensar direito; não queria falar qualquer coisa, tinha sempre uma necessidade iminente de retrucá-la, poderiam estar falando sobre sexo, religião, política, o cocô do cachorro, e mesmo que ela tivesse a razão, sempre procurava ficar por cima, e claro, ela sabia disso.


-A questão não é essa, e você sabe. Você tá fugindo de mim, e ambos sabemos disso.
- Então se ambos sabemos disso, porque caralho que cê tá perguntando, porra? Em uma semana você tá livre disso, já disse.
- Desse jeito que tu queres resolver alguma coisa? Fugindo?
- E tem o que resolver?
- A gente poderia conversar, discutir o que tá rolando...
- Olha, vai fazer quatro anos. Quatro. A gente anda conversando, discutindo o que tá rolando por todo esse tempo, e é sempre a mesma merda. Algo sem sentido, porque não tem resolução. É um fato tácito. Não tem o que discutir, cacete!
- E o que tu quer que eu faça, porra?!
- Pára com esse lance todo, descansa a tua mente um pouco. Tô indo embora semana que vem, poxa. Não precisa disso, sabe...


Eles se olham por um instante; ela corta a vista, se levanta e diz que vai dormir, tá cansada, com sono e já é tarde. Banho, pretende. Passa em frente a ele, quando indo em direção ao banheiro. Então, ele sente o seu cheiro, e o do sexo de outra pessoa, um almiscarado de odores... E fica embriagado com aquilo, uma mistura de sentidos e sensações. Ele não tem ciúmes; mas o não saber sobre o que está acontecendo na vida dela o atormenta.


- Com quem cê transou? Pronde foi?
- Quer parar de encher o saco?
- Por que você não quer falar? Nunca teve frescuras com isso...
Ele falava com aquele tom dengoso, carregado de manejos e charme - deixava ela desarmada.
- Jean-Paul, ele chamava. E depois, Estela. Mas com ela foram só uns beijos, e ela me chupou no banheiro da boate. Incrível como tu sempre consegue me arrancar essas coisas sem muito esforço.
- Hahaha! Cê pegou o Sartre, velho! E ela? Era gostosa?
- Vai começar...? Olhou pra ele ameaçadoramente, mas logo em seguida sorriu.
- Por que cê tá indo pra boates?!
- Banho. Deixa pegar uma roupa...


Então ela passou por ele novamente. Ele sentiu o cheiro dela, mais forte do que nunca, sobrepondo o dos outros. Um cheiro sensível, cansado, vivo, intenso... Ele a desejou como nunca, como nunca em muitos tempos... A puxou por trás, pelos quadris largos, e mordeu-lhe o ombro esquerdo. Sabia todos os seus pontos de olhos fechados. Ela soprou um gemido exasperado e desprevenido. Segurou nas paredes da porta do quarto, uma mão em cada extremo; unhas escarlates brilhando cegamente na penumbra. Desceu as mãos ao vestido e subiu até a altura onde as coxas começavam, usava cinta-liga. Puxou a cinta com as pontas dos dedos, e ela estalou como um chicote inofensivo. Outro gemido... Roçou a barba no seu pescoço, ela puxou-lhe os cabelos para si... Uma mão abarcou-lhe o seio direito, a outra apalpava seu sexo molhado, massageando o clitóris. Virou-se, enfim. Os olhos cruzando-se mais uma vez, e ali estava: dando o seu adeus. Beijou-lhe, tragando-o o quanto podia, e ele retribuía. Abriu o zíper da calça e puxou-o suavemente e com firmeza, ele gemeu baixinho e confessou no seu ouvido:


- Senti tua falta.


Aquela declaração equivalia a um eu te amo. Ela fechou os olhos..., e quis eternizar aquele momento para sempre em si.


* * *

Começou a fazer as malas assim que o notou adormecido. Seu vôo era às sete e trinta da manhã, restava pouco tempo. Arrumou tudo, tomou banho e refez a maquiagem. Nunca fora de ter olheiras, mas no último mês andava com a boca rachada, os olhos fundos e escuros. Tomou um café frio, sem açúcar. Eram seis horas; parou na porta do quarto na mesma posição em que ele a tomou e o observou dormir. Que nem uma criança, como ele não dormia há tempos, ela notara. O sexo com a garota dele não era bom, aconchegado, que nem era com ela? Ela se perguntava... Não havia mais tempo, nem peito, para tais divagações.
Foi em direção ao sofá, acendendo um cigarro; usava um vestido florido, dominical. Não pensava em nada, apenas observava a fumaça azulada. Pegou o celular, retirou o chip, guardou o celular. Colocou o chip no cinzeiro; seis e vinte. Apagou o cigarro no chip e apanhou o bloquinho de anotações. Rabiscou uma nota, e levantou-se, sem muita cerimônia. Pegou as malas, seis e vinte e cinco saiu de casa. Não queria que o taxista buzinasse.
Partira.


* * *


Às treze e quarenta da tarde o telefone toca. Toca, toca. Ele atende sem nem abrir os olhos, e fala ao telefone do mesmo modo.
- Meu bem, vens me pegar? Acorda querido... Saudades tuas já.
- Vou sim. Saudades, mm... horas?
- Dezenove para as duas... Vens de que horas? Tempos que não acordas tarde...bem?
- Humm... te pego as três, tá ok? Ontem foi cansado... bem, sim...
- Certo, então... esperar-te?
- Certamente...
- Beijos...
- Outros, e mais... levo chá.
- Hmm...


E desligou.


***


Esfrega os olhos. Sensação ruim desde que atendeu ao telefone e apercebeu-se acordado... Ela não está mais na cama, e distante que estava ontem... mesmo durante o sexo. Estranha, estranha.


Chamou por ela.
Chamou.
Nada.


- Saco.


Entretanto ele sabia, mesmo sem sair da cama, ele sabia. Ela havia ido embora. Não queria acordar, nem encarar o silêncio. Levantou-se, a contragosto. Nu, tinha um corpo esguio, pêlos claros; arrepiados pelo frio da tarde, e por incertezas vespertinas. Foi até a cozinha, banheiro, sala por fim... Procurou, nenhum vestígio. Ficou a observar, abobalhado, um canário na janela aberta e folhas farfalhando da laranjeira defronte, enquanto coçava a barba em desalinho. Os olhos desviaram-se sozinhos para a mesinha do telefone, lá estava. Pinçou o bilhete com os dedos, e leu um ‘Adeus’ e nada mais, um adeus e ponto. Como ela ousara? Como ousara partir assim? E mentir? Não conseguia pensar, instintos apenas. Pegou o telefone e discou o número de cabeça, antes de a secretária terminar a frase ele avistara o chip do celular meio derretido com o filtro do cigarro melado dum batom cor de canela.
Tempos que não chorava. Por causa dela, ele nem se lembrava de quando. Foi o choro mais amargo do qual tinha memória...


Nunca teve de se atrasar para o seu bem, nem de chegar desolado cheirando a conhaque e cigarros, suado e descabelado. Esqueceu-se do chá, além. Passara a tarde bebendo, rememorando e fumando. Não comeu. Não tomou banho, não pensou em chás nem flores. Dores, talvez. As dela. As que ele sempre relevou... as quais ele até a fez pensar que foram banais, mesmo ela sentindo-as infernalmente. No peito, na alma. Na essência, pois.
Sozinho, chorou  até secar.

* * *


Notara o atraso quando olhou através da janela, e não enxergou nada além do breu e do silêncio morto. De repente a casa não havia mais... Parecia sombria e, de certo modo, pestilenta; talvez pelo impregnar do álcool e do tabaco.


Girou a chave na fechadura, e saiu escoando passos.


Dizem por aí que para se chegar a luz
tem de se passar pela escuridão.