- Onde cê tava? Sai desde manhã cedo... Deixa um recado escrito simplesmente: ‘Saí’ e ponto. Qual foi?
- Você é a minha mãe agora, ou algo do tipo? E não saí desde manhãzinha; saí pouco antes do almoço, cheguei agora.
- Que seja... Pronde foi? Faz uma semana ou mais que mal te vejo.
- Eu também tenho uma vida. E tu não tem muito com o que te preocupar, semana que vem tô voltando pra casa. Daí tu pode parar de fingir pra ti mesmo que tá preocupado com algum algo, e viver a tua vida.
Fitou-o por um tempo, como que explicasse com os olhos as palavras que não conseguia vomitar.
Mediu ela cautelosamente. ‘caralho, pensou, como ela tá tesão’. Fazia um mês e uma semana exatos que não transavam. Ela nunca fora gostosa, sempre meio gordinha, mas ultimamente vinha emagrecendo espantosamente, e ele desconfiava o porquê; fora os remédios que ela mencionou que iria comprar, mesmo contra a sua vontade. E apesar de não ter muitas curvas, era bonita num geral - como dizem: era “comível”. E tinha um rosto lindo. Um olhar penetrante e quase sempre luminoso, a boca pequeníssima e desenhada singelamente. Cabelos curtos, castanhos, cacheados.
Usava um vestido preto, meio amarrotado (o que ele achava o máximo quando ela colocava), um decote ferino, com um zíper no meio pra facilitar tudo. Meias-calças pretas translúcidas interrompidas por botas de salto fino. A maquiagem perfeita; apesar de já ser tarde, não sabia porque, mas imaginava que ela tivesse retocado. Um batom quase cor da boca, porém chamava... Olhos de uma Cleópatra esquecida, e cílios enormes. Tradução: ela queria dar pra alguém. Ele desconfiava o porquê, novamente.
Permaneceu encostado na parede, sem pensar direito; não queria falar qualquer coisa, tinha sempre uma necessidade iminente de retrucá-la, poderiam estar falando sobre sexo, religião, política, o cocô do cachorro, e mesmo que ela tivesse a razão, sempre procurava ficar por cima, e claro, ela sabia disso.
-A questão não é essa, e você sabe. Você tá fugindo de mim, e ambos sabemos disso.
- Então se ambos sabemos disso, porque caralho que cê tá perguntando, porra? Em uma semana você tá livre disso, já disse.
- Desse jeito que tu queres resolver alguma coisa? Fugindo?
- E tem o que resolver?
- A gente poderia conversar, discutir o que tá rolando...
- Olha, vai fazer quatro anos. Quatro. A gente anda conversando, discutindo o que tá rolando por todo esse tempo, e é sempre a mesma merda. Algo sem sentido, porque não tem resolução. É um fato tácito. Não tem o que discutir, cacete!
- E o que tu quer que eu faça, porra?!
- Pára com esse lance todo, descansa a tua mente um pouco. Tô indo embora semana que vem, poxa. Não precisa disso, sabe...
Eles se olham por um instante; ela corta a vista, se levanta e diz que vai dormir, tá cansada, com sono e já é tarde. Banho, pretende. Passa em frente a ele, quando indo em direção ao banheiro. Então, ele sente o seu cheiro, e o do sexo de outra pessoa, um almiscarado de odores... E fica embriagado com aquilo, uma mistura de sentidos e sensações. Ele não tem ciúmes; mas o não saber sobre o que está acontecendo na vida dela o atormenta.
- Com quem cê transou? Pronde foi?
- Quer parar de encher o saco?
- Por que você não quer falar? Nunca teve frescuras com isso...
Ele falava com aquele tom dengoso, carregado de manejos e charme - deixava ela desarmada.
- Jean-Paul, ele chamava. E depois, Estela. Mas com ela foram só uns beijos, e ela me chupou no banheiro da boate. Incrível como tu sempre consegue me arrancar essas coisas sem muito esforço.
- Hahaha! Cê pegou o Sartre, velho! E ela? Era gostosa?
- Vai começar...? Olhou pra ele ameaçadoramente, mas logo em seguida sorriu.
- Por que cê tá indo pra boates?!
- Banho. Deixa pegar uma roupa...
Então ela passou por ele novamente. Ele sentiu o cheiro dela, mais forte do que nunca, sobrepondo o dos outros. Um cheiro sensível, cansado, vivo, intenso... Ele a desejou como nunca, como nunca em muitos tempos... A puxou por trás, pelos quadris largos, e mordeu-lhe o ombro esquerdo. Sabia todos os seus pontos de olhos fechados. Ela soprou um gemido exasperado e desprevenido. Segurou nas paredes da porta do quarto, uma mão em cada extremo; unhas escarlates brilhando cegamente na penumbra. Desceu as mãos ao vestido e subiu até a altura onde as coxas começavam, usava cinta-liga. Puxou a cinta com as pontas dos dedos, e ela estalou como um chicote inofensivo. Outro gemido... Roçou a barba no seu pescoço, ela puxou-lhe os cabelos para si... Uma mão abarcou-lhe o seio direito, a outra apalpava seu sexo molhado, massageando o clitóris. Virou-se, enfim. Os olhos cruzando-se mais uma vez, e ali estava: dando o seu adeus. Beijou-lhe, tragando-o o quanto podia, e ele retribuía. Abriu o zíper da calça e puxou-o suavemente e com firmeza, ele gemeu baixinho e confessou no seu ouvido:
- Senti tua falta.
Aquela declaração equivalia a um eu te amo. Ela fechou os olhos..., e quis eternizar aquele momento para sempre em si.
* * *
Foi em direção ao sofá, acendendo um cigarro; usava um vestido florido, dominical. Não pensava em nada, apenas observava a fumaça azulada. Pegou o celular, retirou o chip, guardou o celular. Colocou o chip no cinzeiro; seis e vinte. Apagou o cigarro no chip e apanhou o bloquinho de anotações. Rabiscou uma nota, e levantou-se, sem muita cerimônia. Pegou as malas, seis e vinte e cinco saiu de casa. Não queria que o taxista buzinasse.
Partira.
* * *
Às treze e quarenta da tarde o telefone toca. Toca, toca. Ele atende sem nem abrir os olhos, e fala ao telefone do mesmo modo.
- Meu bem, vens me pegar? Acorda querido... Saudades tuas já.
- Vou sim. Saudades, mm... horas?
- Dezenove para as duas... Vens de que horas? Tempos que não acordas tarde...bem?
- Humm... te pego as três, tá ok? Ontem foi cansado... bem, sim...
- Certo, então... esperar-te?
- Certamente...
- Beijos...
- Outros, e mais... levo chá.
- Hmm...
E desligou.
***
Esfrega os olhos. Sensação ruim desde que atendeu ao telefone e apercebeu-se acordado... Ela não está mais na cama, e distante que estava ontem... mesmo durante o sexo. Estranha, estranha.
Chamou por ela.
Chamou.
Nada.
- Saco.
Entretanto ele sabia, mesmo sem sair da cama, ele sabia. Ela havia ido embora. Não queria acordar, nem encarar o silêncio. Levantou-se, a contragosto. Nu, tinha um corpo esguio, pêlos claros; arrepiados pelo frio da tarde, e por incertezas vespertinas. Foi até a cozinha, banheiro, sala por fim... Procurou, nenhum vestígio. Ficou a observar, abobalhado, um canário na janela aberta e folhas farfalhando da laranjeira defronte, enquanto coçava a barba em desalinho. Os olhos desviaram-se sozinhos para a mesinha do telefone, lá estava. Pinçou o bilhete com os dedos, e leu um ‘Adeus’ e nada mais, um adeus e ponto. Como ela ousara? Como ousara partir assim? E mentir? Não conseguia pensar, instintos apenas. Pegou o telefone e discou o número de cabeça, antes de a secretária terminar a frase ele avistara o chip do celular meio derretido com o filtro do cigarro melado dum batom cor de canela.
Tempos que não chorava. Por causa dela, ele nem se lembrava de quando. Foi o choro mais amargo do qual tinha memória...
Nunca teve de se atrasar para o seu bem, nem de chegar desolado cheirando a conhaque e cigarros, suado e descabelado. Esqueceu-se do chá, além. Passara a tarde bebendo, rememorando e fumando. Não comeu. Não tomou banho, não pensou em chás nem flores. Dores, talvez. As dela. As que ele sempre relevou... as quais ele até a fez pensar que foram banais, mesmo ela sentindo-as infernalmente. No peito, na alma. Na essência, pois.
Sozinho, chorou até secar.
* * *
Notara o atraso quando olhou através da janela, e não enxergou nada além do breu e do silêncio morto. De repente a casa não havia mais... Parecia sombria e, de certo modo, pestilenta; talvez pelo impregnar do álcool e do tabaco.
Girou a chave na fechadura, e saiu escoando passos.
Dizem por aí que para se chegar a luz
tem de se passar pela escuridão.
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