domingo, setembro 12, 2010

O pão de deus

sentava todos os dias no mesmo banco, em frente a fonte. com as pernas estendidas,
encaixava o tornozelo numa falha que havia na pedra da calçada. 

observava os contornos das árvores, as poucas pessoas que passavam por ali por meros acasos ou atalhos, e por fim, os pombos. trazia consigo sempre um pão dormido nos fundos do bolso traseiro.
era jovem. costume anacrônico prum corpo firme e esguio, desconcertante até.
após uns instantes cruzava os pés, e  assistia aos pombos no entorno da fonte.
pombos são aves terríveis... dão-se em concreto. acaso que tipo de gente comungaria 

com pombos? têm aquele olhar gelatinoso e vago, abobalhado. de zombaria, um escárnio
burro nas retinas. vez outra  avistei um pombo arrancar o olho doutro pombo morto,
e engolir como fosse milho. acaso isso não é ofício de urubu?
pombos são pequenas semi-aberrações. não sei que tipo de gente.
o sol morno tocava a sua testa, e ele estendia a face como que recebendo a graça, 

um sorriso beatífico nos lábios finos, os olhos fechados numa prece solene. 
levantava-se ainda com aquela expressão idiota no rosto e seguia em direção a fonte.
molhava as mãos de quandenvez na água e passava na testa, nas maçãs do rosto, e no pescoço.
repetia. repetia. depois passava um tempo com o olhar turvo na água fixa.
os pombos não repudiavam sua presença, continuavam com aquele vagar sem-sentidos.
pombos são marginais.
tornava para o seu assento, não sem antes parar num quase agacho infantil e esfregar as mãos espalmadas na areia misturadas com cocô de pombo, jambos espatifados e outras tantas coisas.
a náusea. recolhia então duas ou três pedrinhas médias e ajuntava no bolso traseiro o pãozinho já amorfo. a mão e a luva... pairava em sua mente o tal título do machado no momento exato em que sentava no banco. a mão e a luva, a mão e a luva. 

martelando, insistindo. sabia que a história não condizia com o título do livro; 
aquele título pertencia à sua história. portanto, todos os dias com afinco
(de)marcava a sua existência, num transe insensato.
semi-cerrou os olhos e puxou do bolso o pão. esmigalhou em farelos, esmigalhou esfregando as mãos lambuzadas, e soprou e jogou, soprou e jogou ao alto, pros lados, 

na fonte... uma chuva de pedacinhos de pão, e os pássaros entraram em revoada. 
uma ereção pulsava. seus olhos tornavam-se lânguidos.
era jesus, era deus. "pois o pão de deus é aquele que desceu do céu e dá vida ao mundo. eu sou o pão da vida. aquele que vem a mim nunca terá fome". 

assentou  um vento forte e as últimas migalhas espalharam-se aos quatro cantos;
súbito tudo pareceu suspender-se... os pombos arrastavam-se vagarosos, 
balançando os pescoços moles,  com aqueles olhos grandes de deboche, 
como quem põe as mãos nos bolsos e esguelha de soslaio. 
a água tornou turva, seu olhar fixo.
a mão e a luva. existia-se como nunca. como sempre."sou".
atirou as três pedras tão rápido quanto os jatos de sangue espalharam-se por sua camisa de cambraia azul-claro. três peitos cinza-esverdeados ensanguentados. os outros pombos avoaram-se dali por instantes, pois sabiam da história...

pombos como hienas. como bufões, histericamente cômicos, tragicamente mórbidos.
era deus. senhor de si e de tudo. esfregava o sangue no rosto, em exaltações mudas, frenéticas.
um hindu reverenciando o deus-pombo. o olhar acusatório de um dos pombos como duma vítima hitchcockiana,  ainda assim o riso ecoando infinitamente.
cessava o sentido. quando perto chegava em revoadas furiosas o pombo que havia engolido,
sabia chegada a hora de ir.
alvorecia.