segunda-feira, novembro 02, 2009

O Cuco

Ele passava as tardes todas no quintal de casa. Com os olhos fechados, duas contas negras, sentia a brisa morna e boa sobre o corpo franzino... Era o seu refúgio, seu aconchego secreto... Debaixo do cajueiro brincava de ser o criador do Tudo; desviando os destinos das formigas ruivas com seus passinhos de pequenos soldados, libertando as flores de sua reles condição de musas e fazendo-as correr livres como meninas soltas num campo sem fim, engenhando pontes de pedra para lagartas-de-fogo cruzarem e descobrirem que há coisas muito mais interessantes do que ficar simplesmente queimando as mãos e os braços das pessoas... Passava as tardes assim, e assim as queria para sempre...
Um dia, numa das quartas chuvosas em que o jardim costumava ser tingido de um cinza-chumbo, e as formigas apressavam-se em recolher as suas folhas, e se aquecerem dentro daqueles labirintos que nem Dédalo tramaria com tamanha destreza, sua mãe (ele sempre achou estranha a idéia de chamar aquela mulher de mãe...Não por nada, mas porque ele não sentia nela a essência daquela coisa que ele não sabia explicar ter em si mesmo... E ele achava que mãe deveria ser algo assim, seilá...) o chamou lá de dentro, da janela da cozinha que dava pro jardim, ô menino, vem já pra dentro, já te disse que numa dessas você pega um resfriado que nunca mais se cura, ô menino! Entra, que se precisa conversar.....
Foi assim, como um cacto, isolado dos outros deve se sentir; cheio de espinhos, seco por fora e ainda por cima, longe dos seus... Foi mais ou menos assim que ele se sentiu só de imaginar se afastar do seu jardim. Na verdade, ele sentiu muitas outras coisas que não conseguia definir, mas lembrava claramente daquela imagem sertaneja que vira certa vez num documentário (nas raras vezes a que assistia televisão). Ela não entendia, mas o porquê ele não sabia, mas por que? E tratava como se fosse um simples quintal abandonado, uma casca ínfima comparada as que existem no mundo. Ela foi clara e irredutível; iriam se mudar, a casa era pequena por demais, seu irmão (Ele também não o entendia. Criança alheia, perdida dentro dos seus egoismos infantis... Ele não tinha lembrança de ter sido assim; aliás, ele tem todas as lembranças, e o seu quintal sempre estivera presente em quase todas elas...) precisava de espaço, você precisa brincar com os outros garotos! Ele não assimilava o que lhe diziam, parecia não entender... Não, parecia não querer entender. Olhos distantes, escuros e precisos. ...brincar! ...ança brinca! ...ome n... ...rme e acorda nesse quintal! ...mais o que fazer com você... Enfim, estamos conversados, se quiser volte pro seu jardim. Vá se despedindo desde já, se preferir.
Seguiu pro jardim; as horas não passavam lá, ele nem as percebia. Não andava com relógio, não conseguia entender aquele mecanismo, não conseguia sincronizar o Tempo natural com esse tempo austero, apático, de tonalidade cromada. Era indescritível o que aquele coração tão pequeno, dentro daquele ser tão deslocado, sentia; era como se a ânsia de se esquivar das pessoas, do seu convívio insustentável, se esgotasse naquele abraço (e)terno e verde. Sentia-se parte daquilo e de nada mais; além do que, sempre respirava sem ofegar quando se dirigia para os fundos da casa. Dormiu abraçando as raízes da mangueira nessa noite, e todas as formigas e lagartas de fogo se aproximaram solenes e velaram o seu sono.
Passaram-se semanas, meses. Enfim chegara o dia da mudança, e em meio aqueles passos apressados e desmedidos, em meio aquelas tralhas indiferentes com seus tons pastéis amargos, ele se encolhia, agarrado a uns ramos de madressilvas esquecidos, num canto. Ele não respondia; sua mãe lhe gritava, chacoalhava, batia, não reagia. Então, num lampejo, resignou-se a achar os olhos dela. Disse, com o semblante mais doído, mais esgotado que ela já houvera notado: Me deixe ficar. Pertencer.Eu... Por favor... Mãe. Era difícil articular palavras, quando ele mal as usava. Ela não conseguia, nunca o entendera, divagava sobre não ter dignidade para encarar aqueles olhos tão puros, porém bem mais além do que jamais ela poderia conceber, e muito menos, ser. Eu volto no fim da tarde. Eu... Volto depois. Dispensou-lhe um olhar tão desajeitado quanto rápido, virou-se, e partiu.
O dia da mudança fora todo abafado, quente, brilhante, contrastando com o interior do seu corpo que parecia ondular entre frígido e trêmulo, em marés densas. Fora assim o dia todo, até o momento da partida; quando todos tinham ido embora e a casa ficara parecendo pairar na tarde que esfriava. Ele afroxou os dedos dos ramos esmigalhados, percebeu que tinha se agarrado a eles durante todo o dia, e só agora notara pequenas meia-luas vermelhas cravadas nas palmas de suas mãos. Tintas vermelhas misturadas as verdes da madressilva, absorvendo-se. Sua respiração era quase que imperceptível. Pela primeira vez em muito tempo (quando bebê nunca fora de chorar histericamente, quando acontecia eram pequenos gemidos abafados, e poucas lágrimas. A mãe desde então o achava insólito; naquela época confirmou a sua cria trocada, um cuco no seu ninho. Sentira-se vazia naqueles tempos. Aliás, não se recorda de não se sentir mais oca daqueles anos até os posteriores e além) sentiu-as ardentes por baixo de suas pálpebras fechadas, as lágrimas pintando tudo de vermelho borrado, de um negror amargo, purgando toda a sua confusão, dentro de sua pequenez infante.
Então soltou um grito, entrecortado pelas mãos sujas, que terminou em soluços gargalhados que espantaram todos os bem-te-vis e canários das inúmeras árvores do seu jardim. E ele se deixou pertencer novamente, para sempre. Junto com as joaninhas e as formigas ruivas que quando se davam uma folga gostavam de aventurar-se por entre seus pés e descobrir a anatomia do seu pequeno corpo... Junto com as árvores.
No tempo cromado da sua genitora marcavam exatas dezoito horas e trinta e seis minutos de um domingo. Ela chamou por sua cria, e ela veio correndo com as suas perninhas rechonchudas e moles. 'O cuco', pensou ela, cortou o pensamento com nuvens negras e densas no mesmo momento. Não, disse a si mesma, nãonãonãonãonão... Foi ao encontro do seu filho, com seus passos firmes e comedidos. Seu único filho estava ali, naquela sala.
Antes de adormecer, ele não lembrava de algum dia ter se sentido tão livre, e pensou ainda que demoraria ao menos mais uns oito anos para isso acontecer. Adormeceu pensando que teria todo o tempo do mundo para viver, tudo o que ele precisava estava diante dos seus olhos, e isso lhe bastava. Adormeceu num manto verde, com as flores exalando canções-de-ninar, e até os vagalumes voaram de longe para iluminarem o seu sono de menino.

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